segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A PEC 241 e a implantação do debate sobre prioridades



Com a PEC 241 do teto de gastos, deverá se estabelecer no Brasil um debate sobre prioridades como nunca existiu nestes 500 anos de descobrimento. Deve-se colocar na pauta a exposição de motivos e o legislativo, como nunca antes, deverá definir o que é a prioridade.

O que é mais importante, produzir carne ou fuzis? Em algum momento os fuzis podem ser prioridade. E aí, como fazer para hipoteticamente defender as fronteiras se a carne foi eleita prioridade, tendo seu quinhão “imexível”?



A história do Brasil é constituída por associações de empresas ou grupos, aos governantes numa tentativa de se protegerem no terreno da disputa. É o patrimonialismo que tanto dano nos tem trazido (conveniente para culpar o capitalismo).

Agora, grupos poderosos que ao longo das décadas foram convencendo parlamentares de que eram prioridades e com isso foram ficando fora da disputa com sua parte garantida, terão que arregaçar as mangas de dizer para que vieram. Me refiro aos grupos da educação e dos servidores públicos.


A educação, seus educadores e os alunos com resultados vergonhosos em testes internacionais, vem provando que aprendem menos do que deveriam. O sistema de ensino desperdiça muito dinheiro para resultados pífios. A pergunta é: Como continuar a manter uma parcela fixa garantida de repasse governamental para a educação? Por que este repasse não ficar atrelado a resultados?



Quem morrerá primeiro, eu ou minha escola?

No ritmo que estamos dando de despesas para o retorno que devolvemos para sociedade estamos nos tornando mais caros do que nunca. Imagine que um curso de engenharia com grande evasão chega no 3º ou 4º ano com 4 ou 5 alunos. Estes assistem aulas de 5 ou 6 professores doutores com salário bruto de R$ 15.000,00 resultando em uma despesa de quase cem mil reais por mês só com professores, fora água, energia  elétrica, terceirizados, Técnicos administrativos, etc.

Outro dia disse que nestes 34 anos de trabalho como professor no serviço público, já estando próximo de minha aposentadoria, vi muita coisa e fiz muita coisa no meu trabalho. Porém, não sabia se meu local de trabalho, minha escola, sobreviveria por mais 20 anos neste ritmo, o que coincidiria com o fim de minha expectativa de vida, daí a pergunta, quem vai primeiro.




Falar disso no meio de alguns colegas é quase um risco de vida.Quando dizemos da necessidade que temos que ser mais eficientes surge logo alguém para dizer que isso é uma palavra ridícula para ser dita por um educador. Esquecem que somos educadores regidos pela lei do Servidor Público, Lei 8.112 de 11 de dezembro de 1990. A própria Constituição Federal no seu Art. 37, cita:

"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência..."

Torço pela educação perder a prioridade, para o bem do país, e apresentar resultados mais convincentes de que fazem um bom trabalho. A questão não é trabalhar muito, mas trabalhar bem.

Outro grupo que deverá perder a prioridade é o dos servidores públicos, um poderoso grupo de pressão na esfera política sempre se colocando como detentores de qualidades superiores e merecedores de distinção representado nos salários acima da média do mercado (para as mesmas funções) e, principalmente na maldita estabilidade que beneficia muito mais o preguiçoso do que servidor dedicado, a um custo moral muito elevado para este ultimo.

Thomas DiLorenzo escreveu em 2011 o artigo "O funcionalismo público e seus sindicatos" publicado o site Mises Brasil. No fim do artigo a denuncia:

[...] o velho truque socialista sobre o qual Frédéric Bastiat escreveu em seu famoso ensaio, A Lei: os sindicatos veem os defensores da desestatização das escolas e do ensino não como críticos legítimos de um sistema falido e imoral, mas sim como pessoas que têm ódio das crianças.  Da mesma forma, os sindicatos tratam os críticos do assistencialismo não como pessoas preocupadas com a destruição da ética do trabalho e da família causada pelo assistencialismo, mas como inimigos dos pobres.


PS: OS COMENTÁRIOS OFENSIVOS, SEJA CONTRA QUEM FOR, INCLUSIVE O AUTOR DO TEXTO, SOMENTE SERÃO PUBLICADOS NO CASO DE IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR DO COMENTÁRIO.

Parte 2 - Roger Scruton sobre Slavoj Žižek: O Príncipe Palhaço da Revolução


Estado da Arte dá continuidade à publicação do ensaio do filósofo britânico Roger Scruton que avalia o fenômeno do stalinismo pop-psicanalítico de Slavoj Žižek. O texto foi publicado originalmente em setembro de 2016 no City Journal. (Parte 1)
O Príncipe Palhaço da Revolução
Sobre Slavoj Žižek, um novo tipo de pensador esquerdista
por Roger Scruton
Resumir a posição de Žižek não é fácil: ele desliza entre formas de argumentação filosóficas e psicanalíticas e é fascinado pelos aforismos de Lacan. É um amante do paradoxo e acredita fortemente no que Hegel chamou de “trabalho do negativo”, embora siga Lacan ao levar a negação ao extremo – não apenas como uma maneira de estabelecer limites a um conceito, mas como uma maneira de descartá-lo. Atingimos a autoconsciência através de um ato de total negação: aprendendo que não há sujeito. Em vez do sujeito, há um ato de subjetivização, que é a defesa contra o sujeito – uma maneira de evitar que eu me torne uma substância, uma identidade, um centro do ser. O sujeito não existe antes da subjetivização. Porém, através da subjetivização, eu retorno à condição que precedeu minha autoconsciência. Eu sou o que me tornei, e me tornei o que sou ao preencher o vazio do meu passado.

Para Žižek, como para Lacan, há o “pequeno outro”, que aparece como objeto da fantasia, e também do desejo, e o grande Outro, a principal imago, que domina a criança ao crescer, a ordem que traz autoridade, a “consistente e fechada totalidade” a que aspiramos, mas que sempre nos escapa, já que “o grande Outro não existe”. O mesmo que ocorre com o sujeito, ocorre com o objeto – ele não existe, e a não existência é seu modo de existir. Este é o aspecto de Lacan que Žižek considera mais empolgante – a varinha mágica que invoca visões e logo as dispensa ao nada.
Žižek usa essa visão mística para pegar atalhos para muitas de suas surpreendentes conclusões. É porque o stalinismo se baseia na figura do grande Outro que é muito moral – uma boa desculpa que ninguém está em posição de negar. Democracia não é a solução porque, embora implique um “grande Outro bloqueado”, como Jacques-Alain Miller aparentemente demonstrou, não há outro grande Outro – o “grande Outro processual” das leis eleitorais, que devem ser obedecidas, independentemente do resultado.
Mas talvez o verdadeiro perigo seja o populismo, no qual o grande Outro retorna disfarçado de Povo. Ou é certo invocar o Povo, se você o faz no espírito de Robespierre, cuja invocação de Virtude “redime o aparente conteúdo do terror de sua realização”?  Não há como saber, mas quem se importa? Certamente não Žižek, que se refugia entre as saias do grande Outro sempre que os pequenos outros surgem com suas dúvidas irritantes. Dessa maneira, ele pode se defender dos antitotalitários, cujos pensamentos são “um exercício sofístico inútil, uma pseudoteorização dos mais baixos e oportunistas temores e instintos de sobrevivência” – linguagem que tem toda a autenticidade daquelas denúncias em novilíngua que compuseram os editoriais de PravdaRudé Právo, e da eslovena Delo nos tempos de juventude de Žižek.
 De Lacan, Žižek também tira a ideia de que os processos mentais encaixam-se em três categorias distintas: fantasia, símbolo e busca do Real. O desejo vem através da fantasia, que propõe tanto o objeto = a (o objet petit a), e a primeira subjetivização: a fase do espelho, na qual o desejo (e a falta dele) entra na psique da criança. A noção de fantasia está conectada com aquele termo-chave da análise lacaniana – um termo que acabou entrando e dominando a teoria literária francesa sob influencia de Roland Barthes – a jouissance, a substituta de Lacan para o “princípio de prazer” freudiano. As fantasias entram em nossas vidas e persistem porque trazem prazer, e se revelam em sintomas, aqueles fragmentos aparentemente irracionais do comportamento por meio dos quais a psique protege seu terreno obtido de prazer das realidades ameaçadoras do mundo externo– do “invisitável” mundo do Real.
Esse pensamento gera uma emenda espetacular à ideia freudiana de superego, expressa em termos que unem Kant ao Marquês de Sade:
É lugar-comum da teoria lacaniana enfatizar como [o] imperativo moral kantiano esconde uma injunção obscena do superego: “Aproveite!” – a voz do Outro que nos leva a seguir o dever pelo dever é uma irrupção traumática de um apelo à impossíveljouissance, perturbando a homeostase do princípio do prazer e seu prolongamento, o princípio da realidade. É por isso que Lacan compreende Sade como a verdade de Kant.
Tendo levado a máquina de absurdos tão longe assim, identificando Kant e Sade, e consequentemente rejeitando, como uma forma de obscenidade, a moralidade Iluminista na qual a sociedade ocidental tem tentado por dois séculos se ancorar, Žižek é capaz de oferecer uma nova teoria da ideologia, que renova a crítica marxista do capitalismo.
Ideologia, na clássica análise marxista, é entendida em termos funcionais, como o sistema de ilusões por meio do qual o poder atinge legitimidade. O marxismo oferece um diagnóstico científico da ideologia, reduzindo-a a um sintoma, demonstrando como as coisas realmente são por trás dos fetiches. Ao fazer isso, ela “abre nossos olhos” para a verdade: vemos a exploração e a injustiça onde antes víamos contrato e livre troca. A tela ilusória das commodities, na qual relações entre pessoas aparecem como uma movimentação regrada das coisas, desmorona diante de nós e revela a realidade humana: dura, crua e mutável. Em suma, ao rasgar o véu da ideologia, preparamos o caminho para a revolução.
Mas, neste caso, Žižek sensatamente pergunta, por que a revolução não chega? Por que o capitalismo, chegando a essa autoconsciência, continua a afirmar seu crescente domínio, sugando cada vez mais a vida humana para dentro do redemoinho do comércio de commodities? A resposta de Žižek é que a ideologia é renovada por meio da fantasia. Agarramo-nos ao mundo do mercado como cena de nossa jouissancemais profunda, e evitamos a realidade externa, o Real que se recusa a ser conhecido. Passamos a entender que a ideologia não está a serviço da economia capitalista, mas a serviço de si mesma – é prazerosa por si só, assim como a arte e a música.
A ideologia se torna um brinquedo em nossas mãos – nós tanto a aceitamos como rimos dela, sabendo que tudo tem seu preço em nosso mundo de ilusões, mas que nada de valor aparecerá lá. É assim, ao menos, que eu entendo observações como esta, que é tão clara quanto Žižek consegue ser sobre este assunto:
Por que essa inversão da relação de fins e meios precisa permanecer escondida, por que sua revelação é contraproducente? Porque revelaria o prazer que se encontra na ideologia, na própria renúncia ideológica. Em outras palavras, revelaria que a ideologia serve apenas ao seu próprio objetivo, que não serve a nada – que é precisamente a definição lacaniana de jouissance.
 É nesse ponto, contudo, que a clareza é imperativa. Estaria Žižek nos dizendo que o mundo das commodities e dos mercados veio para ficar e que devemos aprender a aproveitá-lo da melhor maneira possível? O que significa ele ter chegado a essa posição utilizando aquelas estranhas categorias lacanianas que aparecem ao longo de sua prosa no lugar de fundamentos, mas que são completamente infundadas? Há um argumento real aqui, que seja convincente para uma pessoa que não teve a sorte de passar pela lavagem cerebral de Jacques-Alain Miller? Quase sempre, em momentos cruciais, quando um argumento claro é necessário, Žižek se refugia por trás de uma pergunta retórica, a qual ele enche de encantos misteriosos da liturgia lacaniana:
Não seria a topologia paradoxal do movimento de capital, o bloqueio fundamental que se resolve e se reproduz através de uma atividade frenética, um poder excessivo na forma aparente de umaimpotência fundamental – essa passagem imediata, essa coincidência de limite e excesso, de falta e sobra – precisamente aquela do objet petit a de Lacan, do resto que representa a falta fundamental e constitutiva?
A pressão sintática exercida por essas questões retóricas é direcionada para a resposta: “Claro, eu já deveria saber disso”. O objetivo é escapar à questão real, que é sobre o significado e a fundamentação dos termos. Darei outro exemplo espetacular, já que é relevante ao tema:
Não seria o domínio definitivo da psicanálise a conexão entre a Lei simbólica e o desejo? Não seria a multiplicidade de satisfações perversas a própria forma na qual ocorre a conexão entre a Lei e o desejo? Não seria a divisão lacaniana do sujeito a divisão que diz respeito precisamente à relação do sujeito com a Lei simbólica? E ainda, não seria a confirmação definitiva desse “Kant avec Sade” de Lacan, que coloca o universo sadiano de perversão mórbida como sendo a “verdade” da afirmação mais radical do peso moral da Lei simbólica na história humana (a ética kantiana)?
Se você respondeu “não” a qualquer uma dessas questões, a resposta seria “Não? Que raios você quer dizer com não?” Pois a questão real é: “O que exatamente você quer dizer?”.
 Mas isso me leva ao cerne do esquerdismo de Žižek. O Real, tocado pela varinha mágica de Lacan, desaparece. É a ausência inicial, a “verdade” que também é castração. A varinha apaga a realidade e, assim, dá uma nova vida ao sonho. É no mundo dos sonhos, portanto, que a moralidade e a política agora estão implantadas. O que importa não é o mundo desacreditado de eventos meramente empíricos, mas os acontecimentos do mundo onírico, o mundo dos intelectuais exaltados, para quem ideias e entusiasmos cancelam meras realidades.
Assim, em um ensaio particularmente repugnante sobre o “Terror Revolucionário”, Žižek exalta o “terror humanista” de Robespierre e Saint-Just (em oposição ao terror “anti-humanista, ou melhor, desumano” dos nazistas) não porque fosse particularmente bondoso com suas vítimas, mas porque expressava as “explosões utópicas da imaginação política” de seus perpetradores. Não importa que o terror levasse à prisão de centenas de milhares de pessoas inocentes e à morte de tantas mais. As estatísticas são irrelevantes, dispensadas pela varinha de Lacan, reduzidas à raiz quadrada do menos um – um número puramente imaginário. O que é relevante é a maneira como, por meio de discursos que Žižek reconheceria como grandiloquência autoexultante se suas faculdades críticas não o houvessem abandonado diante de um herói revolucionário, Robespierre “redimiu o aparente conteúdo de terror de sua realização”.
Dessa forma, para Žižek, o pensamento cancela a realidade, quando o pensamento está “à esquerda”. O que você faz importa menos do que o que você pensa estar fazendo, dado que o que você pensa estar fazendo tem o objetivo principal de emancipação – de égaliberté, como colocou o teórico marxista Étienne Balibar. O objetivo não é igualdade ou liberdade no sentido qualificado em que você ou eu entendemos esses termos. É a igualdade absoluta (com um pouquinho de liberdade, se você tiver sorte), que, por sua natureza, só poderá ser atingida por meio de um ato de total destruição. Buscar esse objetivo também pode significar reconhecer sua impossibilidade – não é a isso que equivalem esses projetos “totais”? Não importa. É precisamente a impossibilidade da utopia que nos prende a ela: nada pode macular a pureza absoluta do que jamais será testado.
Não devemos nos surpreender, portanto, quando Žižek escreve que “a pequena diferença entre o Gulag stalinista e o campo de extermínio nazista também era, naquele momento, a diferença entre civilização e barbárie”. Seu único interesse está no estado de espírito dos perpetradores: Eram eles movidos, mesmo que de maneira indireta, por entusiasmos utópicos, ou eram, pelo contrário, movidos por algum apego desacreditado? Se você se afasta das palavras de Žižek e se pergunta onde a linha entre civilização e barbárie se encontra, no momento em que conjuntos rivais de campos de extermínio estavam competindo na contagem de corpos, você certamente colocará a Rússia comunista e a Alemanha nazista de um lado da linha, e alguns outros lugares – Grã-Bretanha e Estados Unidos, por exemplo – do outro. Para Žižek, isso seria um absurdo, uma traição, uma recusa patética de reconhecer o que realmente está em jogo. O que importa é o que as pessoas dizem, não o que fazem, e o que dizem é redimido por suas teorias, por mais idiota e imprudente que seja sua busca, e independentemente do quanto desprezar as pessoas reais. Resgatamos o virtual do real por meio de nossas palavras, e os atos não têm nada a ver com isso.
 Ao ler Žižek, lembro-me de uma visita que fiz, certa vez, ao cemitério de Devichye Pole, em Moscou, nos tempos de Gorbachev. Meu guia, um intelectual dissidente semelhante a Žižek em aparência e comportamento, me levou ao túmulo de Khrushchev, onde havia um monumento criado por Ernst Neizvestny. O escultor se destacara devido a uma denúncia particular de Khrushchev, quando, após uma visita a uma exposição de arte moderna, o líder soviético decidiu atacar toda a comunidade artística. Meu guia considerava essa birra de Khrushchev como muito mais séria do que sua destruição de 25 mil igrejas e não via nada de errado em seu enterro ali, no que outrora era solo consagrado.
O monumento mostra a cabeça de Krushchev, sobre dois troncos de pedra, um preto e outro branco, simbolizando as contradições no caráter do líder. Afinal, meu guia insistiu, foi ele quem denunciou Stálin e, assim, mostrou-se amigo dos intelectuais, bem como foi ele quem denunciou o modernismo artístico e, então, declarou-se inimigo dos intelectuais. Ficou dolorosamente claro para mim que o povo russo nada contou na história intelectual do comunismo russo, seja na mente de seus defensores ou de seus críticos, com quem todo o período moderno tem estabelecido uma espécie de diálogo – conduzido em alto tom e com todas as armas disponíveis – entre o Partido e a intelligentsia. Milhões de servos foram silenciosamente para o túmulo apenas para ilustrar uma conclusão intelectual e dar aos argumentos de poder a prova decisiva do sofrimento desamparado de um outro.
Essa redução da realidade nos faz lembrar um fato crucial: que o objetivo de uma emancipação suprema, que também será o reino da igualdade total, é uma questão de fé, não de previsão. Expressa uma necessidade religiosa que não pode ser descartada e que não sobreviverá a toda prova apresentada para sua refutação. Por um tempo, no despertar de 1989, parecia que a agenda comunista havia sido derrotada e que as evidências levavam à rejeição das ideias que haviam escravizado pessoas do Leste Europeu desde a guerra. Mas a máquina de absurdos foi preparada para obliterar os disparos de argumentos fundamentados, para cobrir tudo em uma névoa de incerteza e reviver a ideia de que a revolução real ainda está por vir, e que será uma revolução de pensamento, uma liberação interna, da qual os argumentos fundamentados (mera “ideologia burguesa”) não podem se defender. O reino do absurdo enterrou a questão da revolução tão abaixo da possibilidade de questionamento racional que ela não podia mais ser diretamente mencionada.
 Ao mesmo tempo, os alquimistas nunca deixaram de propor a revolução como objetivo, como aquilo que devem invocar das trevas criadas por seus feitiços. O que exatamente eles estavam esperando? Voltemos ao mundo da análise racional para entender que há pelo menos dois tipos de revolução e que é importante, quando fazemos dessa palavra um ídolo, nos perguntarmos a qual das duas nos referimos. Há o tipo exemplificado pela Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra e pela Guerra de Independência dos Estados Unidos de 1783, nas quais cumpridores da lei tentaram definir e proteger seus direitos de serem usurpados. E há o tipo exemplificado pela Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917, nas quais uma elite toma o poder de outra e, então, se estabelece por meio de um reino de terror.
A diferença entre esses dois tipos de revolução é enorme e tem um vasto significado para nós, se observarmos o curso da história moderna. Mas Žižek e outros esquerdistas pós-mordernos rejeitam tal distinção com desdém. Para eles, as revoluções inglesa e americana não emergiram de um brilho na imaginação dos intelectuais exultantes, apenas os forçou a experimentar as necessidades das pessoas reais. Em vez de examinar o que essas revoluções atingiram, se foram ou não suficientes, e se foram, de qualquer forma, o melhor que se poderia esperar, pensadores como Žižek preferem se enterrar em disputas acadêmicas com companheiros de esquerda, trocando frases de uma formidável novilíngua em torno do santuário onde o ídolo foi escondido.
Aqueles que pensavam, em 1989, que nunca mais um intelectual seria pego defendendo o partido leninista ou os métodos de Stálin, não contavam com o poder esmagador do absurdo. Na necessidade urgente de acreditar, de achar um mistério central que seja o verdadeiro significado das coisas e para o qual a vida de uma pessoa possa ser dedicada, o absurdo é muito preferível ao bom senso. Ele constrói um estilo de vida em torno de algo que não pode ser questionado. Nenhum ataque fundamentado é possível contra o que nega a possibilidade do ataque fundamentado. Assim, aquela utopia é introduzida no lugar que a teologia deixou vago, para erguer seu própriomysterium tremendum et fascinans no centro da vida intelectual. Uma nova geração redescobriu a voz autêntica do proletariado, que fala na língua da máquina de absurdos. E apesar de todas as decepções, estavam convencidos de que a “ditadura do proletariado” permanecia sendo uma opção – na verdade, a única opção. A prova disso está na prosa de Žižek; você tem a palavra dele.
Em Žižek, encontramos provas surpreendentes do fato de que a “hipótese comunista”, como Badiou a chama, nunca desaparecerá. Apesar da tentativa de Marx de apresentá-la como conclusão de uma ciência, a “hipótese” não pode ser testada nem refutada, pois ela não é uma previsão nem, em qualquer caso real, uma hipótese. É uma afirmação de fé no desconhecido. Žižek concede seu peso, sem hesitar, a toda causa que for contra, de qualquer forma, à ordem estabelecida das democracias ocidentais. Ele inclusive se define contrário à democracia parlamentar e não tem escrúpulos ao defender o terror (adequadamente estetizado) como parte de seu glamoroso desapego. Mas suas poucas invocações vazias da alternativa igualitária não vão muito além dos clichês da Revolução Francesa e logo são envoltas pelos feitiços lacanianos como forma de se proteger dos questionamentos. Quando se trata da política real, ele escreve como se a negação fosse suficiente. Seja a intifada palestina, o IRA, os chavistas venezuelanos, os sans-papiers franceses ou o movimento Occupy – tanto faz a causa radical, o que importa é o ataque ao “Sistema”.
Assim como em 1789, como em 1917, como na Grande Marcha de Mao, no Grande Salto para Frente e na Revolução Cultural, o trabalho de destruição se auto-alimenta. A lengalenga de Žižek serve a um propósito: desviar a atenção do mundo real, das pessoas reais e do raciocínio moral e político comum. Ela existe para promover uma causa única e absoluta, a causa que não admite críticas nem compromissos e que oferece redenção àqueles que a abraçam. E que causa é essa? A resposta está em todas as páginas escritas por Žižek: Nada.
Tradução: Ana Beatriz Fiori

Fonte - http://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/roger-scruton-sobre-slavoj-zizek-o-principe-palhaco-da-revolucao-parte-2/











PS: OS COMENTÁRIOS OFENSIVOS, SEJA CONTRA QUEM FOR, INCLUSIVE O AUTOR DO TEXTO, SOMENTE SERÃO PUBLICADOS NO CASO DE IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR DO COMENTÁRIO.

Parte 1 - Roger Scruton sobre Slavoj Žižek: O Príncipe Palhaço da Revolução


Estado da Arte publica com exclusividade no Brasil um ensaio do filósofo britânico Roger Scruton que avalia o fenômeno do stalinismo pop-psicanalítico de Slavoj Žižek. O texto foi publicado originalmente em setembro de 2016 no City Journal.
O Príncipe Palhaço da Revolução (Parte 1)
Sobre Slavoj Žižek, um novo tipo de pensador esquerdista
por Roger Scruton
Nas décadas de 1960 e 1970, o consenso, nas instituições acadêmicas e intelectuais ocidentais, caia muito para a esquerda. Escritores como Michel Foucault e Pierre Bourdieu ganharam destaque ao atacarem a civilização que eles rejeitavam como “bourgeois”. Os textos de teoria crítica escritos por Jürgen Habermas dominavam o currículo das ciências sociais, apesar de serem extremamente tediosos. A reescrita da história nacional como um conto de “luta de classes”, realizada por Eric Hobsbawm na Grã-Bretanha e Howard Zinn nos Estados Unidos, quase se tornou uma ortodoxia não só nos departamentos de História universitários, mas também nas escolas de ensino médio. Para nós, dissidentes, era um tempo desalentador, e raramente eu acordava pela manhã sem me perguntar se dar aula na Universidade de Londres era a carreira certa. Então o comunismo entrou em colapso no Leste Europeu, e me permiti ter esperança.

Durante um tempo, parecia estar por vir um pedido de desculpas daqueles que haviam dedicado seus esforços intelectuais e políticos a encobrir os crimes da União Soviética ou enaltecer as “repúblicas do povo” da China e do Vietnã. Mas esse momento durou pouco. Em uma década, o establishment da esquerda retomou o controle, com Zinn e Noam Chomsky renovando suas denúncias descontroladas contra os Estados Unidos, a esquerda europeia se reagrupando contra o “neoliberalismo” (o novo nome para o livre mercado) como se este é que fosse o problema desde o começo, Habermas e Ronald Dworkin colecionando prestigiosos prêmios por suas defesas quase ininteligíveis dos principais lugares-comuns da esquerda, e o veterano marxista Hobsbawm sendo recompensado por uma vida inteira de lealdade inabalável à União Soviética ao ser condecorado “Companheiro de Honra” pela rainha.
Realmente, o inimigo não era mais descrito como antes: o modelo marxista não cabia muito bem às novas condições, e parecia um pouquinho insensato defender a causa da classe operária quando seus últimos membros estavam se juntando às fileiras dos não empregáveis ou dos autônomos. Mas uma coisa permaneceu inalterada no despertar do colapso comunista: a convicção de que era inaceitável ir para a “direita”. Você pode ter dúvidas quanto a certas doutrinas ou políticas de esquerda; você pode cogitar que esse ou aquele pensador ou político esquerdista cometeu “erros”. Mas isso era o mais longe que a autocrítica conseguia chegar. Em contrapartida, simplesmente contemplar um pensamento de direita equivalia a entrar no território do diabo.
Assim, em poucos anos, a visão maniqueísta da política moderna, como uma luta até a morte entre a boa esquerda e a cruel direita, retomou seu domínio. Assegurando ao mundo que não haviam sido enganados pela propaganda comunista, os pensadores de esquerda renovaram seus ataques à civilização ocidental e sua economia “neoliberal” como sendo a principal ameaça à humanidade em um mundo globalizado. O termo “de direita” ainda é um xingamento hoje em dia, assim como era antes da queda do muro de Berlim, e as atitudes da esquerda se adaptaram às novas condições com pouca moderação de seu zelo oposicionista.
Houve, no entanto, uma mudança importante. Um novo tipo de pensador de esquerda surgiu – um que veste seu zelo revolucionário com uma camada de ironia, parcialmente rejeitando seu próprio idealismo impraticável como se falasse através da máscara de um palhaço. Se você resolveu estudar no departamento de humanas de alguma universidade americana, logo vai se deparar com o nome de Slavoj Žižek, o filósofo que cresceu no regime relativamente moderado da Iugoslávia comunista, classificado como “dissidente” durante o declínio do comunismo na sua Eslovênia natal, mas que agora está fazendo onda como crítico radical do Ocidente, ainda que sempre com certa ironia.
É prova da leniência do regime iugoslavo o fato de Žižek ter podido passar um tempo em Paris no início dos anos 1980. Lá, ele encontrou o psicanalista Jacques-Alain Miller, que estava promovendo um seminário do qual ele participou, e que também se tornou seu analista. Miller é genro de Jacques Lacan, o inescrupuloso maníaco pelo poder que Raymond Tallis descreveu como “o analista do inferno”, e este é um preço infeliz que se paga ao tentar entender Žižek: você tem que entender Lacan, também.
Os Écrits de Lacan, publicados em 1966, foram uma das fontes que embasaram os estudantes revolucionários em maio de 1968. Trinta e quatro volumes dos seus seminários se seguiram, publicados por seus discípulos e, posteriormente, traduzidos para o inglês – ou ao menos uma língua que se parecia com inglês tanto quanto o original se parecia com francês. A influência desses seminários é um dos mistérios profundos da vida intelectual moderna. Sua regurgitação truncada de teorias que Lacan não explorou nem entendeu é, por pura falta de vergonha intelectual, sem precedente na literatura. Tecnicidades inexplicadas, tiradas da teoria dos conjuntos, da física de partículas, da linguística, da topologia, e seja o que mais pudesse conferir poder ao feiticeiro que as invocou, são usadas para provar teoremas espetaculares como o de que um pênis ereto em condições burguesas é equivalente à raiz quadrada de menos um, ou que você não (até ser convencido por Lacan) “ex-siste”.
Outro conceito lacaniano – o do grande Outro – é crucial para entender Žižek. Após as famosas palestras sobre Hegel de Alexandre Kojève, realizadas no Institut des Hautes Études antes da II Guerra Mundial e assistida por todo mundo que era alguém no mundo literário parisiense (inclusive Lacan), a ideia do Outro se tornou uma fixação do pensamento filosófico francês. O grande e sutil argumento da Fenomenologia do Espírito de Hegel, de que atingimos a autoconsciência e a liberdade por meio do reconhecimento do Outro, tem sido reciclado repetitivamente por aqueles que assistiram às palestras de Kojève. Você o encontra em Jean-Paul Sartre, Emmanuel Levinas e Georges Bataille. E você o encontra, de maneira horrivelmente truncada, em Lacan.
Para Lacan, o grande Outro (A maiúsculo em Autre) é o desafio apresentado ao self pelo não self. Esse grande Outro assombra a percepção de mundo com o pensamento de um poder dominador e controlador – um poder que buscamos e do qual fugimos. Há também o pequeno outro (a minúsculo em autre), que não é muito diferente do self, mas é o que se vê no espelho durante o estágio de desenvolvimento que Lacan chama de “fase do espelho”, quando a criança supostamente vê seu reflexo e diz “Aha!”. Este é o ponto de reconhecimento, quando a criança encontra pela primeira vez o “objeto = a”, que, de alguma forma para mim impossível de decifrar, indica tanto o desejo como a ausência dele.
A fase do espelho dá à criança uma ideia ilusória (e breve) do self, como um outro todo-poderoso no mundo dos outros. Mas esse self logo é esmagado pelo grande Outro, um personagem baseado no contexto de seio bom/seio mau, amigo/inimigo criado pela psicanalista Melanie Klein. Ao expor as trágicas consequências desse encontro, Lacan traz surpreendentes insights, frequentemente repetidos sem explicação por seus discípulos como se tivessem mudado o curso da história intelectual. Um é particularmente repetido: “não há relação sexual” – uma observação interessante vindo de um sedutor em série, de quem nenhuma mulher, nem mesmo as analisandas, escapava.
Além disso, é atribuída a Lacan a ideia de que o sujeito não existe além da fase do espelho até que seja trazido à existência por um ato de “subjetivização”. Você se torna um sujeito autoconsciente ao tomar posse do seu mundo e incorporar sua alteridade em seu self. Dessa maneira, você começa a “ex-sistir” – existir para fora, em uma comunidade de outros.
As ruminações de Lacan sobre o Outro aparecem constantemente nos textos de Žižek, que provam um aspecto em que o sistema comunista tinha vantagem sobre seus rivais ocidentais: são produtos de uma mente seriamente educada. Žižek escreve com perspicácia sobre arte, literatura, cinema e música, e quando está tratando dos eventos de sua época – sejam as eleições presidenciais americanas ou o extremismo islâmico no Oriente Médio –, sempre tem algo interessante e desafiador a dizer. Ele aprendeu o marxismo não como uma busca exibicionista de uma classe ociosa acadêmica, mas como uma tentativa de descobrir a verdade sobre nosso mundo. Estudou Hegel com profundidade, e no que certamente são seus dois textos de mais fôlego – The Sublime Object of Ideology (1989) e a Parte I de The Ticklish Subject (1999) –, Žižek mostra como aplicar tal estudo aos tempos confusos em que vivemos. Ele responde tanto à poesia quando à metafísica de Hegel, e preserva o anseio hegeliano por uma perspectiva total, na qual o ser e o nada, a afirmação e a negação, são relacionados e reconciliados.
Se tivesse permanecido na Eslovênia, e se a Eslovênia tivesse permanecido comunista, Žižek não seria o estorvo que se tornou desde então. De fato, a introdução de Žižek no mundo acadêmico ocidental é quase suficiente para lamentar o colapso do comunismo no Leste Europeu. Ao adotar a visão psicanalítica de Lacan como base transcendental para sua nova filosofia socialista, Žižek eleva a empolgação a um nível que nenhum daqueles monótonos socialistas geralmente produzidos pela academia ocidental conseguiu atingir. E seu estilo astuto e abrangente dá indícios constantes de argumentação persuasiva. Às vezes, pode ser lido com facilidade por muitas páginas seguidas, com uma plena sensação de que está compartilhando questões que podem produzir um entendimento entre ele e seu leitor.  Ao mesmo tempo, passa rapidamente por afirmações absurdas que parecem, a princípio, lapsos de escrita, mas que o leitor descobre, com o passar do tempo, serem o verdadeiro conteúdo de sua mensagem.
Como exemplo do estilo de Žižek, eis aqui alguns dos assuntos tratados em três páginas consecutivas, escolhidos mais ou menos ao acaso, de seu envolvente livro de 2008, In Defense of Lost Causes: o Sudário de Turim; o Corão e a visão de mundo científica; o Tao da física; o humanismo secularista; a teoria lacaniana da função paterna; a verdade na política; o capitalismo e a ciência; a arte e a religião segundo Hegel; a pós-modernidade e o fim das grandes narrativas; a psicanálise e a modernidade; o solipsismo e o ciberespaço; a masturbação; Hegel e o espírito objetivo; o pragmatismo de Richard Rorty; e há ou não há um grande Outro?
O tiroteio de assuntos e conceitos torna fácil, para Žižek, introduzir suas pequenas doses de veneno, que o leitor, acompanhando o ritmo da prosa, pode acabar engolindo facilmente sem perceber. Assim, não devemos “rejeitar o terror in toto, mas reinventá-lo”; devemos reconhecer que o problema de Hitler, e de Stálin também, é “não serem violentos o suficiente”; devemos aceitar a “perspectiva cósmica” de Mao e considerar a Revolução Cultural um evento positivo. Em vez de criticar o stalinismo como imoral, devemos louvá-lo por sua humanidade, já que resgatou o experimento soviético da “biopolítica”; além disso, o stalinismo não era imoral, mas muitomoral, pois baseava-se na figura do grande Outro, que, como os lacanianos sabem, é o erro primordial do moralista. Também devemos reconhecer que a “ditadura do proletariado” é “a única escolha verdadeira hoje”.
A defesa que Žižek faz do terror e da violência, seu apelo por um novo Partido baseado nos princípios leninistas, sua celebração da Revolução Cultural de Mao, apesar das incontáveis mortes que foram, ainda, louvadas como parte do significado da política de ação – tudo isso pode ter servido para difamar Žižek entre os leitores esquerdistas mais moderados, não fosse pelo fato de que nunca é possível saber se ele está falando sério. Talvez ele esteja rindo – não só de si mesmo e de seus leitores, mas do establishmentacadêmico que o inclui, a sério, ao lado de Kant e Hegel no currículo de filosofia, com um Journal of Žižek Studies agora já em seu quarto ano de publicação. Talvez ele esteja nos incentivando a dar férias para o cérebro, zombando dos idiotas que acreditam haver algo mais a se fazer com ele além de escapar dos pensamentos:
Aqui, no entanto, é preciso evitar a armadilha fatal de pensar no sujeito como o ato, o gesto, que depois intervém para preencher a lacuna ontológica, e insistir no ciclo vicioso irredutível da subjetividade: “a ferida só é curada pela lança que a causou”, isto é, o sujeito “é” a própria lacuna preenchida pelo gesto da subjetivização (o que, para Laclau, estabelece uma nova hegemonia; para Rancière, dá voz ao “parte sem parte”; para Badiou, assume fidelidade ao evento-verdade; etc.). Em suma, a resposta lacaniana para a questão posta (e respondida de maneira negativa) por filósofos tão diferentes como Althusser, Derrida e Badiou – “Pode a lacuna, a abertura, o Vazio que precede o gesto de subjetivização ainda ser chamado de ‘sujeito’?” – é um enfático “Sim!” – o sujeito é, ao mesmo tempo, a lacuna ontológica (a “noite do mundo”, a loucura do autoisolamento radical) bem como o gesto de subjetivização que, por meio de um curto circuito entre o Universal e o Particular, cura a ferida de sua lacuna (em lacanês: o gesto do Mestre que estabelece uma “nova harmonia”).“Subjetividade” é um nome para essa circularidade irredutível, para um poder que não combate uma força resistente externa (diga-se, a inércia de dada ordem substancial), mas um obstáculo que é absolutamente inerente, que, em última instância, “é” o próprio sujeito. Em outras palavras, o próprio esforço do sujeito para preencher a lacuna retroativamente sustenta e gera essa lacuna.
Perceba a súbita intromissão, na logorreia, de uma longa frase em itálico, em nada mais clara que as outras, como se Žižek houvesse parado para tirar uma conclusão antes de passar, de maneira exultante, para o próximo conceito malformado.
A passagem é parte de uma contribuição para a teoria lacaniana da “subjetivização”. Mas seu significado principal é deixar claro para o leitor que, seja o que for dito sobre outros autores de absurdos em voga, Žižek também o disse, e que todas as verdades, todas as contribuições, todos os fragmentos úteis de bobagens esquerdistas, são afluentes que correm na incontrolável onda de sua abrangente negatividade. A prosa é um convite: mergulhe, leitor, para lavar sua mancha de argumentação fundamentada, e aproveite, enfim, as refrescantes águas da mente, que correm de assunto em assunto, de lugar em lugar, desimpedidas das realidades, sempre fluindo para a esquerda.
Žižek publica cerca de dois ou três livros por ano. Ele escreve com uma distância irônica de si mesmo, consciente de que não é possível obter aceitação de outra forma. Mas também se preocupa em criticar a plausibilidade superficial da sociedade de consumo que substituiu a antiga ordem da Iugoslávia comunista e descobrir a causa espiritual profunda de seus males. Quando não escreve alusivamente, pulando como um gafanhoto de assunto em assunto, ele tenta desmascarar o que considera serem os autoenganos da ordem capitalista global.  Como seu outro mestre, o filósofo francês de extrema-esquerda Alain Badiou, Žižek não consegue oferecer uma alternativa precisa. Sem esta, porém, uma alternativa imprecisa – até mesmo puramente imaginária – servirá, sejam quais forem as suas consequências. Nas palavras dele, com a linguagem de Badiou: “É melhor um desastre de fidelidade ao Evento do que uma não existência de indiferença ao Evento.” (O Evento é a sempre esperada, e sempre adiada, Revolução.)[Continua]
Tradução: Ana Beatriz Fiori


PS: OS COMENTÁRIOS OFENSIVOS, SEJA CONTRA QUEM FOR, INCLUSIVE O AUTOR DO TEXTO, SOMENTE SERÃO PUBLICADOS NO CASO DE IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR DO COMENTÁRIO.

O anúncio de Olavo Bilac

O anúncio de Olavo Bilac Autoria desconhecida Certa vez, um grande amigo do poeta Olavo Bilac queria muito vender uma propriedade rural, um ...